segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Desdém versus racismo

Do Joaquim Nhampoca, licenciado em sociologia e pós-graduado em saúde pública, recebi, com pedido de publicação, um texto com o título em epígrafe, que transcrevo na íntegra:
"Pretendo com a discussão a seguir fazer uma abordagem partindo do significado das palavras racismo e desdém. Esta discussão pode parecer bastante trivial, mesquinha ou retrógrada, tendo em conta o tempo e o discurso sobre o racismo. Seja como for, nada pode contribuir para que não possa apresentar aqui a minha opinião ou análise, tendo como base uma recente viagem para o exterior em que mais uma vez senti na carne e na pele que as pessoas não são iguais. Não são iguais sob o ponto de vista anatómico mas supõe-se que sejam iguais sob o ponto de vista de todas serem seres humanos com cabeça, tronco e membros como aprendi em biologia. Também aprendi sobre a existência de várias raças, o que não pode ser motivo para descriminação, desprezo, desdém e outras coisas que não me ocorrem neste momento.
Preto e branco são cores, portanto, pertencem a mesma categoria. A diferença é que uma cor é preta e a outra é branca. A mesma analogia pode ser estabelecida entre o branco, quiçá outras mundi-visões.
A palavra desdém significa, segundo o Dicionário Universal de Língua Portuguesa (2001), desprezo altivo ou então orgulho. Portanto, este desprezo e orgulho no contexto da abordagem aqui apresentada é fruto do espírito de superioridade movido pela raça a razão do racismo, uma doutrina e atitude baseadas na crença na superioridade de uma raça ou várias raças sobre as outras, sem fundamento científico (Dicionário de Economia e Ciências Sociais, 2001).
O racismo é a tendência do pensamento, ou do modo de pensar em que se dá grande importância à noção da existência de raças humanas distintas e superiores umas às outras. Onde existe a convicção de que alguns indivíduos e sua relação entre características físicas hereditárias, e determinados traços de carácter e inteligência ou manifestações culturais, são superiores a outros. O racismo não é uma teoria científica, mas um conjunto de opiniões pré concebidas onde a principal função é valorizar as diferenças biológicas entre os seres humanos, em que alguns acreditam ser superiores aos outros de acordo com sua matriz racial. A crença da existência de raças superiores e inferiores foi utilizada muitas vezes para justificar a escravidão, o domínio de determinados povos por outros, e os genocídios que ocorreram durante toda a história da humanidade (www.wikipedia.org).
O legado do passado colonial marcado pela superioridade do branco em relação ao negro, os estudos antropológicos sobre os negros espalhados pelo mundo fora, os sistemas como o apartheid (que o digam os sul africanos), a convivência entre negros e brancos no Brasil (basta olhar para os papéis assumidos pelos negros nas várias novelas brasileiras que representam o dia a dia da convivência social no Brasil), é tudo isso, apenas, uma amostra do real de um mundo que se pretende justo e igualitário.
Mas como é que a coisa começa? Ou para ser mais explícito porquê a motivação em escrever sobre este assunto? Tudo começa abordo do voo da SA 207 que fazia Joanesburgo Washington com escala em Dakar-Senegal. Não desconhecendo as regras de tomar os lugar no avião dirigi-me ao assento 48 A, segundo o meu cartão de embarque, que não vi mal. Mas, eis que minutinhos depois sou confrontado por uma senhora de raça branca (eu negro), dirigindo-se a mim nas seguintes palavras: is your boarding pass 48 A? (o seu cartão é 48 A?) ao que respondi yes (sim) de seguida a mesma se dirige a mim dizendo I wanted to know if I were in the right place (queria saber se estava no lugar correcto). Estas palavras são tão simples, mas um bom analista ou dependendo do ouvido que ouve e os olhos que vêem, podem ter várias interpretações:
Primeiro, pensar que a senhora realmente estava interessada em saber se estava no lugar correcto, pese embora ela tivesse em mão o cartão de embarque;
Segundo, pensar que a senhora tivesse pensado que eu (o negro) estava enganado e não soubesse que no avião os lugares são tomados em função dos cartões de embarque;
Terceiro, que ela tivesse tido um choque ao descobrir que a cadeira ao seu lado estava um negro. Provavelmente, nunca tinha sonhado ou imaginado sentar, ao lado de um negro, durante uma viagem!
Por último, o desdém ou desprezo pelo negro, fruto de uma construção social da imagem do negro face ao branco (não conheço a nacionalidade dela, se for Sul africana, a situação se complica se recorrermos a um passado histórico). Tudo isso me levou a pensar na exclusão e discriminação social vivida pelos negros americanos nos espaços públicos, transportes, posto de trabalho, etc. Que o digam os escritos e reivindicações da Maya Angelou e de Martin Luther King.
O sentimento de repulsa, desdém ou então racismo parecia estar a manifestar-se na senhora minha vizinha do lado direito (por minutinhos), por vezes parecia ter sarna. Realmente não aguentou e, depois das primeiras instruções de segurança, apenas vi a senhora a sair, feito uma fugitiva. Recolheu os seus pertences até os que estavam na gaveta e escapuliu-se sem no mínimo dizer adeus (até esqueceu-se, no bolso da cadeira, dos chips que estava comendo). Afinal, tinha identificado um lugar não ocupado, provavelmente merecido, comparado a minha companhia.
Acredito que como eu, muitos de vocês já passaram por uma situação idêntica, se não muitas vezes. Eu pergunto, é este mundo onde podemos cantar a justiça social, igualdade, dignidade, respeito, ajuda mútua e tantas outras coisas que almejamos e discutimos lado a lado nos vários encontros, nacionais, regionais e internacionais? Ou neste mundo, onde alguns entendidos na matéria dizem que estamos de passagem, vive-se mentindo uns aos outros ou manipulando a identidade? Mas é muita pena e, não é difícil de perceber porquê em situações diametralmente opostas não me admira que esta senhora, a do episódio, venha ser um grande parceiro de actividade em Moçambique (assim vai o mundo e as relações interpessoais, se não entre Estados).
A poetisa portuguesa Florbela Espanca, num dos seus poemas escreve sobre o desdém e penso que é uma análise muito minuciosa pode permitir o enquadramento do texto nesta discussão:

Desdém
Andas dum lado pro outro
Pela rua passeando;
Finges que não queres ver
Mas sempre me vais olhando.
É um olhar fugidio,
Olhar que dura um instante,
Mas deixa um rasto de estrelas
O doce olhar saltitante…
É esse rasto bendito
Que atraiçoa o teu olhar,
Pois é tão leve e fugaz
Que eu nem o sinto passar!
Quem tem uns olhos assim
E quer fingir o desdém,
Não pode nem um instante
Olhar os olhos d’alguém…
Por isso vai caminhando…
E se queres a muita gente
Demonstrar que me desprezas
Olha os meus olhos de frente!…
Florbela Espanca - O Livro D’Ele, poemas (in www.prahoje.com.br)
Num mundo tão globalizado, onde o global se torna local, onde o tempo, espaço e as relações sociais se comprimem na palma da mão, parece-me que já não faz sentido o sentimento de desdém e repulsa ou então superioridade. Como diz Florbela Espanca, Andas dum lado pro outro//Pela rua passeando//Finges que não queres ver//Mas sempre me vais olhando.
Apesar das nossas diferenças, somos todos irmãos (assim diz a Bíblia).

Bibliografia
Dicionário de Economia e Ciências Sociais (2001), Porto Editora, Lisboa
Dicionário Universal de Língua Portuguesa (2001), 3ª edição, Moçambique editora Lda, Maputo
http://pt.wikipedia.org/wiki/Racismo
http://www.prahoje.com.br/florbela